VICK, MEU FIEL ESCUDEIRO
Deixei
passar um dia para que a dor em meu coração arrefecesse, para tomar coragem e
tentar colocar num texto, parte das lembranças inesquecíveis que se embaralham
em meu sofrido peito.
Foi nessa mesma época há quinze anos, que
minha mulher recebeu a ligação do Pet Shop informando que tinha o filhote que
procurávamos.
Tinha que
ser vacinado, pois era um presente para minha sogra que havia perdido há pouco,
Joe, um espertíssimo Poodle que morreu de uma dessas doenças brabas e contagiosas, embora tivesse
sido vacinado. Provavelmente a vacina estava vencida.
Recordo que
já era quase noite quando fomos ao Pet Shop para escolher o bichinho.
Eram dois que
preenchiam os requisitos, um Poodle e um Pug , vacinados, com pouco mais de
três meses de idade.
Os dois
filhotes eram uma graça, mas minha mulher ficou encantada com o puguesinho de
cara preta, que custava quase dois mil reais, enquanto o poodle custava apenas
trezentos.
Obviamente
escolhi o poodle, mas Regina conseguiu me chantagear, pois fungando e com
lagrimas nos olhos não desgrudava do cãozinho, que inclusive já tinha nome,
Vitor.
A
contragosto, fui incapaz de resistir a choradeira e acabei gastando uma nota na
aquisição do filhote.
Nesse mesmo
final de semana que precedia a Páscoa, o levamos para Itanhaém, presenteando minha sogra com o belo e caro
cãozinho.
Aparentemente
tudo corria bem, mas Dona Dita, acostumada com Joe, inteligentíssimo, a ponto
de ao toque da campainha, subir no sofá, afastar a cortina e olhar pela janela
para ver quem era o visitante, sentiu dificuldades em se adaptar ao filhote
levado e brincalhão, desobediente, não atendendo ordens nem comandos.
Algum tempo depois, voltando a Itanhaém,
percebemos que alem de estar mancando, Vick, apelido que adotamos, dormia num
pequeno banheiro fora de casa, o que achamos um absurdo, pois Pug é uma raça
delicada e carinhosa, que precisa de cuidados e atenção constante.
Acredito que
minha sogra deve ter ficado satisfeita em nos devolver o presente, que de ora
em diante passaria a fazer companhia ao Kimo, nosso “encardido” poodle já com
uns quatorze anos, que mordia traicoeiramente na saída, o calcanhar de todos que frequentavam nossa
casa.
Kimo foi
nosso primeiro cão, presente que demos a Fernanda e era seu xodó.
Mas a
chegada de Vick mudou as coisas, pois adotou Fernanda de imediato e o amor foi
recíproco, provocando ciúmes em Kimo, que também era muito esperto, me
escolhendo como seu novo e melhor companheiro.
E assim passavam os dias, com Vick enchendo a
paciência do velho e ranzinza Kimo, comendo de birra sua comida e dormindo na
cama de minha filha, colado ao travesseiro, roncando em suas orelhas. Os cães
da raça Pug roncam alto, devido a problemas de respiração.
Kimo dormia
em nosso quarto, quietinho a meu lado. Também adorava dormir no meio de minhas
pernas, na cadeira do “papai”, nos sábados e domingos após o almoço, quando já
subia da quadra manguaçado, pois após os jogos a tradição é traçar uma
respeitável quantidade de cervas e
alguns destilados.
Tudo
perfeitamente normal até o casamento de minha filha, com nova mudança nos
hábitos e costumes na casa, pois nos recusamos a deixar que levasse Vick como
parte de seu dote.
Nova mexida
e adaptação, pois Vick mais forte e ágil tomou rapidamente o lugar do Kimo nas sonecas entre minhas pernas, me adotando
como seu novo dono, ou o inverso.
Kimo, sem
opções, passou a dormir ao lado de Regina, também adotando-a como nova mestra.
Infelizmente
Kimo não durou muito mais, pois com 17 anos bem vividos já estava cego e
cansado, falecendo naturalmente, sendo enterrado nos fundos do jardim do nosso
prédio.
A tristeza
foi imensa. Escrevi um belo texto em sua homenagem que rendeu maravilhosos
comentários de pessoas que o conheceram, infelizmente perdidos, devido ao
bloqueio do meu blog pelo servidor Terra.
Vick
tornou-se a sensação de nossa casa, adorado por todos, até mesmo por Júnior que
nunca morreu de amores pelo Kimo.
Dávamos
nossos passeios todos os dias, no início pela manhã e a tardinha, com o passar
do tempo nos limitamos a apenas uma saída.
Nossa
caminhada habitual era pela calçada em direção a pracinha, que denominei “da
macumba”, dada a quantidade de despachos com os quais topávamos, alguns
tentadores, com coxinhas, quibes e outros acepipes que deixavam Vick e eu com
água na boca.
Com a crise
até os despachos rarearam.
Nas
caminhadas encontrávamos com Belinha, uma Yorkshire de Dona Ema que dava “bola” ao Vick, mas era
castrada.
Batia longo
papos com Dona Ema, vizinha do prédio ao lado, ótima fofoqueira que me colocava
a par dos rolos de seu edifício.
Outra amiga
habitual com quem também batia bons papos
era a Ana, dona de dois bassês invocados que não deixavam Vick cheirá-los
a vontade. Após sua mudança embora para
perto, raramente nos vemos, embora mantenhamos contato pelo whats app.
Vick não
tinha noção de perigo, pois cruzava com cães enormes e tentava partir para o
confronto, sempre contido a tempo para evitar a catástrofe obvia.
Tinha também
uma irresistível queda por cadelas grandes, em especial uma waimarane e uma
boxer, que deixavam que ele a muito custo, pela diferença de altura, cheirasse
suas “partes” a vontade.
Nessas
andanças, conhecemos também uma vizinha, que tinha três Pugs, um macho e uma
fêmea castrados e a mais nova ainda “virgem”, prometida a Vick assim que
entrasse no cio.
Quando
chegou a esperada ocasião, Mel a cadelinha, foi levada ao nosso apartamento,
pois segundo entendidos, a cadela que deve visitar a casa do macho.
Vick
recebeu-a todo assanhado e para evitar constrangimentos pretendíamos deixar os
dois passarem a noite “in Love”, na cozinha.
Eis que lá
pelas tantas, escutamos um uivo altíssimo da Mel, provavelmente sentindo falta
da dona que já havia se retirado.
Vick
assustado com o berreiro, não quis mais saber de graça nenhuma com a “gritona”,
da qual tomou distância, refugiando-se em nosso quarto.
Pela manhã,
Mel foi recolhida intacta.
Nesse
quesito Vick deixou a desejar, preferindo após o infausto namoro, se dedicar a
chamegos e mordidas em uma cachorra de pelúcia que havíamos comprado.
Vick foi uma
alegria em nossas vidas. Adorava as viagens a Itanhaém desfrutando do tamanho e
dos jardins da casa.
Logo que
chegávamos, subia correndo a rampa que ligava nossa casa, a de minha sogra,
cujo terreno fazia fundos com o nosso, onde abrimos uma passagem. Ia apresentar
seus cumprimentos a Dona Dita.
Aqui no Rio,
alem dos amigos de rua que eram muitos, conhecidos das caminhadas, Vick era a
“paixão” de Bahuan, Buldog francês
tarado de minha filha, que alem de lamber desbragadamente sua orelha, era louco
para montá-lo. Vick passava um cortado para evitar esse duro assédio, pois
Bahuan é bem mais forte, mas sempre deu um jeito de escapar do tarado bombador.
Minha
vingança era preparar a comida do Vick quando Bahuan estava por perto. Bastava
o atrevido se aproximar para Vick virar uma fera e partir para o confronto,
fazendo o grandão afinar.
Vick era
minha sombra. Me acompanhava nos banhos, acordava cedo para dormir a meu lado
enquanto lia mais de hora no “trono”, antes de fazer a barba e da ducha
matinal.
Nunca o
deixávamos só, sem alguém da família por perto.
Em nossas
viagens Júnior sempre era escalado para o plantão contínuo, e vice-versa.
Em nossas ausências
prolongadas, Vick passava o primeiro dia recluso em nosso closet, sem
comer. A partir do segundo dia, aceitava
a companhia de meu filho(não tem tu, vai tu mesmo).
Não o
considerava muito inteligente, mas tinha lá suas espertezas e manhas.
Ao sentir a
noite cheiro de perfume, sabia que íamos dar uma saída. Baixava a orelhas,
desenrolava o rabo, e se recolhia para sua cama no closet, dormindo até nosso
retorno.
Vick tinha
cama em pelo menos quatro cantos de
nossa casa, das quais fazia uso principalmente no inverno, pois era
terrivelmente calorento. Vasilhas com
água também em todos os cômodos.
Ficou surdo
de repente e com o passar do tempo foi também perdendo a visão, exigindo que eu
passasse diretamente em seus olhos, duas vezes por dia, uma pomada especial
para retardar o processo.
Vick, como
todo cão da raça Pug, não late, é dócil, mas sujeito e alergias e problemas
constantes de ouvido, sendo freguês fiel do veterinário e usuário de colírios,
pomadas e remédios diversos, inclusive para artrose.
Deveria ser
chamado de “Prejuízo”.
Até o ano
passado, com o agravamento da perda de visão e com dificuldades para andar,
nossos passeios ficavam limitados apenas a frente do prédio, pois Vick já trombava
com objetos, caindo diversas vezes.
Nosso
coração ia ficando apertado, pois sabíamos que nosso querido cão não iria
longe, dando claros sinais de fadiga física.
Neste último
ano praticamente não saiu de casa, a não ser a inevitáveis visitas ao
veterinário.
Vick passou a andar bem cambaleante, caindo
repetidas vezes, tendo grande dificuldade para se aprumar.
Acordava
muita e muitas vezes de madrugada, chorando e gemendo de dor, fazendo com que
eu levantasse, lhe desse analgésicos e ficasse agradando até o remédio fazer efeito e pegar
no sono.
Passei
muitas madrugadas em claro ao lado desse fiel companheiro.
Nas ultimas
semanas as dificuldades aumentaram.
Andava pouco
e com mais dificuldade. Somente comia deitado ou com minha ajuda, sustentando
seu corpo. Beber água era outra batalha.
Sentíamos que seu tempo junto a nós estava terminando.
Na madrugada
de segunda, Vick chorou muito, não conseguindo se sustentar de pé nem por um
segundo, pois suas patinhas traseiras estavam totalmente “soltas”, como se
estivessem ligadas ao corpo por um fino músculo.
Passamos
parte da manhã discutindo sobre as providências, e Junior achou melhor levá-lo
ao veterinário que o atendeu há poucos meses, quando apresentou pequena
melhora.
Fiquei
extremamente comovido ao ver meu filho derramar lagrimas silenciosas, fazendo
agrados no Vick, que deitado, gemia baixinho.
Pediu-me que
fizesse o melhor, evitando ao máximo medidas extremas.
(escreveu um belo texto, sobre seu ângulo
de visão, “in memorian” ao inesquecível pequenino no meu breve post de ontem)
Fomos até
uma clinica na Barra, onde o veterinário conhecido estava de plantão.
Após longo e
acurado exame, constatou que suas pernas traseiras estavam paralisadas,
provavelmente devido a uma compressão na coluna.
Um possível
caminho seria a realização de uma ressonância magnética com anestesia geral, e provável
operação da coluna.
Considerando
a idade, as condições gerais de saúde, o veterinário achou a opção mais
indicada abreviar o sofrimento de Vick, que durante todo o exame latiu
dolorosamente.
Perguntou se
queria consultar as pessoas de casa, mas preferi assumir o ônus sozinho, pois
já havia tido um acordo tácito com minha mulher e minhas filhas, caso a medida
extrema fosse mesmo inevitável.
Chorei um
bocado, pois o veterinário me deu uns minutos a sós com Vick, enquanto fazia os
preparativos para sua passagem.
Recordando
agora enquanto escrevo, as lagrimas voltam a correr livremente em meu rosto.
Foi rápido.
Cheirando minha mão Vick dormiu seu sono mais profundo.
Pediram que saísse
enquanto embalavam seu corpinho mirrado, pois havia emagrecido nos últimos
meses.
Senti o
calor de seu corpo em meu colo, durante o longo trajeto até nosso prédio.
De imediato,
solicitei ao jardineiro que cavasse um buraco perto do local onde Kimo havia
sido enterrado.
Foi uma
rápida cerimônia, com lagrimas mudas e algumas orações, pois tenho certeza que
Vick estava entrando direto no céu dos cachorros, com pompa e circunstância,
sendo recepcionado por Kimo e outros velhos amigos.
Nossa casa
anda estranha, vazia, parece que até seu cheiro sumiu rapidamente, pois estava
com incontinência, fazendo xixi e cocô em todos os cantos.
Olho no
quarto, na sala, no banheiro e ainda sinto sua presença, deitado a meus pés,
enquanto degustava os charutos.
A dor vai
custar a passar, pois Vick era parte importante de nossa rotina, de nossas
vidas.
Meu velho e
fiel escudeiro se foi, mas suas lembranças estão gravadas a “fogo” em nossos
corações.
Ficou a
saudade.
José
Roberto- 10/04/19