O CÉU NÃO PÔDE ESPERAR
Chovia muito!
Eram exatamente sete horas e treze minutos quando o visor do
meu celular brilhou, aparecendo o nome de mamãe.
Senti imediatamente uma fisgada no lado esquerdo do peito,
pois antes mesmo de levar o telefone ao ouvido já sabia do acontecido.
Bia, querida sobrinha que demonstrou tanto afeto durante
esses derradeiros meses, informava chorosa, que mamãe havia partido.
Recebi e notícia no escritório, ligando imediatamente para
Regina, pedindo para que se preparasse para partirmos de imediato para
Piracicaba.
A chuva continuava intensa e a viagem se prenunciava longa,
exigindo atenção redobrada.
Durante as sete horas gastas no trajeto, tive tempo de
relembrar fatos e passagens vividas por Hercília, minha brava, corajosa e desprendida
mãe.
Com cento e um anos completados recentemente, mamãe teve uma
vida fecunda, laborioso, com altos e baixos, sem jamais esmorecer e perder a
fé.
Casou-se muito cedo, com Tonico, seu eterno apaixonado,
gerando uma extensa prole. Oito filhos, sendo que o mais velho, Heraldo, partiu
prematuramente, deixando raras lembranças com os irmãos que não o conheceram.
Apesar do pouco estudo, mamãe sempre foi curioso e
observadora, aprendendo a gostar dos livros, onde buscava ampliar seus
horizontes e conhecer o mundo.
Nós, os filhos, devemos a ela o gosto que herdamos pela
leitura, pois alem da fartura de livros que sempre circulou por nossa casa,
desde pequeno, mesmo ainda com a compreensão limitada, ficava horas sentadas ao
lado da rede, onde papai, refestelado, ouvia a leitura correta e firme de
Hercília.
Tenho dúvidas se papai realmente prestava atenção nas
palavras do texto, pois sentado na posição de “Buda”, balançava gingando como
um pêndulo, devaneando, chegando muitas vezes a fechar os olhos.
Mas, pacientemente, mamãe lia todos os dias para papai, ou
quem sabe, para os filhos que a rodeavam e quedavam silentes durante essas
seções culturais.
Dada a ingenuidade e boa índole de papai, mamãe sempre foi a
“fêmea dominante” de nossa família, a que cuidava das finanças, da educação ,
do estudo das crianças, enfim dos problemas do dia a dia.
Em épocas difíceis e de dinheiro curto, mamãe se desdobrou
fornecendo refeições a parentes e conhecidos, garantindo como uma leoa, a
sobrevivência da prole.
Através de bolsas de estudo parciais, mamãe conseguiu que
freqüentássemos bons colégios, o Salesiano Dom Bosco, para os homens, e o
Assunção, para uma das filhas, Lilida, tendo em vista que Cida, a mais velha,
formou-se precocemente como professora e já lecionava em escolas rurais da
vizinhança.
Durante os dez anos vividos em Monte Alegre, na época em que
explodia em juventude, mamãe foi sempre rígida com relação aos horários, tanto
para os estudos como para os folguedos, embora sempre encontrássemos meios de
burlar essas normas caseiras, pois os castigos eram sempre leves e facilmente
comutáveis.
Ao mudarmos novamente para a região central de Piracicaba,
nos inicio dos anos setenta, mamãe que já ajudava a garimpar provisões para o
Convento das Carmelitas, passou a dedicar-se com mais intensidade as obras
sociais, tendo sido por mais de vinte anos presidente da Obra do Berço, entidade
que assistia gratuitamente mães solteiras e pobres, fornecendo-lhes enxovais e
roupas para bebes futuros ou já nascidos.
Jamais poderei esquecer a dedicação e o carinho dispensado
por mamãe a meus filhos, em especial para Maria Silvia, principalmente logo
após seu nascimento, quando passou mais de quarenta dias internada no Hospital
das Clinica, em São Paulo.
Mamãe, incansável, passou todas essas noites a seu lado,
revezando durante o dia com Regina, para renovar suas energias e estar novamente
a postos, ao cair do sol.
Mamãe foi aquela avó incapaz de chamar a atenção de qualquer
neto por gritarias, correrias e algazarras em sua casa. Encarava esse excesso
de vigor, como uma necessidade natural de queima de energia das crianças.
Suas palavras eram sempre de carinho, jamais para ralhar ou
chamar a atenção.
Os netos e bisnetos sempre retribuíram essa bondade, com
demonstrações continuas de afeto.
Não posso deixar de mencionar papai, um eterno apaixonado
por Hercilia.
Papai jamais levantou a voz ou mesmo criticou algo feito por
mamãe, nem mesmo alguma tipo de comida que não tinha lá ficado grande coisa.
Papai sempre foi só elogios.
Partiu antes, para preparar com esmero as coisas para sua amada.
Conforme descrevi, a chegada de papai no céu causou grande
comoção, pois durante os longos cinco anos em que esteve acamado, que nada
significa perante a eternidade, o Altíssimo preparava um lugar especial a sua
direita, chegando mesmo a despertar um leve ciúme entre os anjos e querubins.
Após vinte e oito anos de sua gloriosa recepção no paraíso,
Tonico “top ten” celestial, caprichou ao preparar um lugar especial a seu lado,
para sua querida Lila.
Era assim que papai chamava mamãe na intimidade.
Tanto, que não teve paciência em esperar muito tempo para
chamá-la para ocupar sua cadeira celestial ricamente ornada que construída com
tanto carinho.
Menos de dois meses após mamãe apresentar sintomas de
cansaço e debilidade, Tonico requisitou sua presença, independente desse período ser um átimo insignificante de tempo, perante a eternidade.
Tonico ansiava pela presença de Lilá.
No final de março quando a visitamos, mamãe estava bem,
lúcida, falante, embora um pouco magra e com dificuldades para andar.
Depois de uma forte gripe abrigando-a a ficar acamada,
começou um período de desgaste, para desgosto e sofrimento dos filhos, porem
sem jamais deixar escapar uma palavra de dor ou lamento.
Percebendo o irreversível da situação, rezávamos para que
sua travessia fosse breve, ao encontro do amado Tonico.
Temos absoluta certeza, que a chegada de Hercília foi mais
natural, pois o respeito e admiração granjeados por Tonico nesses vinte e oito
anos, não deixam duvidas. Ele é especial, um dos preferidos do “Chefão”.
Hercília chegou flutuando ao som leve das trombetas,
assopradas por multidões de querubins, que não disfarçavam uma pequena inveja
por aquela recepção tão gloriosa.
Tonico, sorridente, de braços abertos, esperava por sua
mulher amada, fiel companheira terrena por longos anos, e que agora teriam
juntos,toda a eternidade, para desfrutarem daquele amor tão puro e singelo, que
só acontece entre pessoas realmente especiais.
Papai e mamãe foram pessoas muito, mas muito especiais.
Deixaram marcas de sua bondade nos filhos, netos e
tataranetos.
Rezo para que Deus me ilumine e me de forças para transmitir
aos meus, ao menos uma pequena parcela da bondade, carinho e integridade que recebi dos meus pais.
Se com um lá em cima, ao lado do “Maioral”, meu lugarzinho
já estava assegurado, agora, com a chegada de mamãe, não resta a menor duvida,
de que meu assento em lugar de destaque, está mais que garantido.
Mais uma vez, como sempre fiz desde criança, peço sua benção
minha querida mãe.
Me guie e proteja,
durante o período que me resta nessa travessia.
Abençoe seu filho muito amado.
José Roberto- 23/07/12